Assisti ao ”Pantera Negra” e, enfim, o filme é foda e não vou gastar muita tinta virtual nele porque muito já foi discutido. Mas ele me botou de novo para pensar no caso real do músico negro Daryl Davis, que há mais de 20 anos chama para bater papo membros do Ku Klux Klan, neonazistas e todo tipo de maluco racista radical para tentar “convertê-los” para fora de seus preconceitos.
E muitas vezes ele consegue e se tornou amigo deles. Daryl, que já tocou com músicos como Chuck Berry e Little Richard, tem em casa uma coleção de roupões de ex-membros que deixaram o KKK. A história dele pode ser vista no documentário “Accidental Courtesy”, disponível na Netflix. Só assistam o trailer que já tem imagens de dar calafrios.
Um dos momentos mais tensos do documentário me lembrou o embate em “Pantera Negra” entre o rei T’Challa e Killmonger, lados que defendem uma resistência pacifista ou violenta contra a opressão racial. Daryl Davis se encontra com militantes jovens do movimento #blacklivesmatter, que defendem uma reação mais violenta, argumentando que não adianta ficar batendo papo quando jovens negros são mortos diariamente pela polícia.
O encontro de Daryl com os jovens termina numa briga feia. Os militantes acham que ele está perdendo tempo e sendo hipócrita ficando amigo de um ou outro racista ao longo dos anos, sendo que existe um oceano de milhares. Já Daryl defende que o diálogo é a única forma de resistir sem ser aniquilado, que a mudança deve ser gradual e quase como “incluir o inimigo”.
O que torna esse encontro tão tenso para mim é que, sinceramente, eu não sei quem está certo, assim como vejo pontos de vista válidos para T’Challa e Killmonger. Obviamente não tenho como saber como é ser uma pessoa negra, mas acredito que se estivesse com minha família levando tiros devido a racial profiling uma hora começaria a imaginar que o caminho da conversa não está dando muito certo.
Enfim, “Accidental Courtesy” é um documentário excelente que parece que só se torna mais atual a cada dia. E, de brinde, outro ponto que “Pantera Negra” me botou pra pensar: o afrofuturismo.
Acho ótimo ver um herói negro em um blockbuster, mas existem outros super-heróis negros. O que achei o grande trunfo do filme foi colocar em primeiro plano uma cultura negra e africana. Isso é raríssimo na cultura pop.
Na cultura pop e literatura pulp, a África é de onde vem os totens amaldiçoados de deuses esquecidos no estilo Lovecraft, ou o lugar sombrio que leva à insanidade de “Coração das Trevas”. Ou as histórias de atrocidades de guerras, genocídios, crianças-soldado, raptos de mulheres. Obviamente é um continente com muitos problemas, mas não é possível que sejam só essas as narrativas que existem por lá.
Novamente, não tenho como saber como é ser negro, mas não posso deixar de tentar imaginar o peso que deve ter não saber de suas origens, de qual cultura você vem. Sei que sou parte italiano, russo e escocês e por mais que isso não me defina, acaba sendo minhas raízes culturais. E a quase totalidade das pessoas negras nas Américas sabem que vieram… de algum lugar da África. E no máximo com um exame de DNA é possível no máximo supor de que região, mas o laço cultural foi cortado completamente.
O afrofuturismo de “Pantera Negra” traz de certa forma esse laço de volta, e de uma forma positiva. Eu achei incrível a riqueza cultural nas roupas e arranha-céus com motes tribais de Wakanda. Por sinal, acho que as cenas que mais gostei pessoalmente no filme foram os dois passeios naquele “mercadinho de Wakanda”, que mostra como os cidadãos normais vivem. Me deu vontade de ver uma serie de contos ambientados ali, nem tanto na alta roda da realeza. Um detetive cyberafropunk noir investigando casos no submundo de Wakanda? Quero.
Tem diversas filosofias de como distinguir arte e entretenimento. A que uso pessoalmente é que se a obra me botou pra pensar é arte, ou se eu desliguei o meu cérebro e me diverti à beça é entretenimento. Com “Pantera Negra” tive os dois. Foi o filme da Marvel que mais pensei e mais me diverti. Ele me fez procurar referencias de livros de histórias afropunk, que estou achando muito mais vivas e criativas que o cyberpunk tradicional. Por enquanto, achei essa relação interessante pra caçar alguns na minha lista de leitura. Não quero sair de Wakanda tão cedo.
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