O Assassinato do Pro Gamer – Capítulo 1: Rage Quit (versão beta)

Capítulo 1: Rage Quit (versão beta)

 

“Foi como se alguém tivesse ateado fogo em
quatrocentos mil adolescentes. De novo.”

 

(Esta é uma versão final, porém não revisada do primeiro capítulo do meu livro O Assassinato do Pro Gamer, com previsão de lançamento independente ainda no primeiro semestre de 2019. Alguns termos e passagens podem ser modificados na versão final. O primeiro livro da série, Imaculada Concepção, pode ser encontrado aqui. – Solari)

 

Como a maioria das más ideias disfarçadas de boas, aquela veio a Cascavel quando ele estava bêbado com a cara amassada contra o balcão do boteco do Wang e decidiu dar uma boa olhada em sua vida. Grande erro.

Parecia bem inocente. “Passe mais tempo com os netos,” sua voz interior dissera. “Tente, sabe, se conectar com eles e tal.”

Bom, o neto de Cascavel Frederiquinho estava arrendando seus processos mentais para brasbátzus conglomerados financeiros. Não haveria outra conexão possível com ele além de trocar suas fraldas até o fim do contrato de cinco anos. Com isso restava sua neta Camila. Uma garota doce de 14 anos fora o fato de odiar ficar na ‘carnet’ – o que as pessoas chamam de ‘mundo físico’ – só um pouco mais do que ela odiava ‘gente velha’. E gente velha era qualquer um com mais de 16 anos.

Ela reagiu com uma previsível atitude blasé quando Cascavel tentou conversar com ela, e o ignorou submergindo seus sentidos no processador de dados implantado em seu olho. Falar com esses neomilenials era como falar com aparições – Cascavel tinha experiência lidando com ambos. Seus olhos podem estar apontados para você, mas a molecada estava sempre meio-surfando na aethernet, reclamando de minúcias da vida virtual nos feedbloids, mentalmente jogando Fatal Kombat com um amigo no Vietnã.

Infelizmente para Camila, o avô DELA era um ex-mercenário casca-grossa com uma arma de EMP.

Depois de alguns minutos de gritos melodramáticos de “EU TE ODEIOO!”, ela cansou e finamente falou algo que gostaria de fazer com Cascavel.

“Eu quero ver @G0dM0de jogarr,” Camila disse. “Ele é tão max que você nem groka.”

O que Cascavel não conseguia ‘grokar’ era o preço dos bilhetes das eOlimpíadas. Lá se foram os criptoreais que ele estava guardando para dar entrada em um novo par de pulmões. Ele ainda teve que comprar uma terceira entrada depois que Camila insistir em um xilique de balançar o chão que o namorado dela fosse junto.

O namorado até parecia ser um ‘garoto’ bacana. André Andrade, o Androide. Sintéticos emancipados tinham uma queda por repetição de padrões. Os pais de Camila ainda estavam aceitando o relacionamento, mas as coisas melhoraram quando descobriram que André era um artista de sucesso. O cérebro positrônico de André triturava big data da aethernet para encontrar tags, palavras, memes e expressões trendando para criar um tipo bizarro de rap de timeline de rede social. Para Cascavel soava como lixo sem sentido – assim como a maior parte das timelines – mas críticos garantiam que André “revolucionava os paradigmas na poesia neo-inexpressista brasileira.”

Cascavel não ligava que o garoto vestia cromo e não carne. Ele parecia gostar genuinamente de Camila à sua maneira meio, bem, robótica. Negadores de direitos não-humanos argumentariam que ele não sentia nada de verdade, que a máquina estava apenas replicando o comportamento humano. Bom, é o mesmo que a maior parte das pessoas de carne e osso que Cascavel conhecia faziam também.

O grande dia das eOlimpíadas veio. Camila usava um vestido colado, cabelo que mudava de cor, maquiagem bioluminescente, as solas de seus tênis de cadarços automáticos emitindo um brilho azul-cherenkov contra o chão. André vestia um boné virado ao lado, nanojeans de ajuste inteligente, uma jaqueta que chegava até os antebraços e luvas sem dedos. Suas roupas eram tomadas por emblemas de empresas, que para Cascavel lembravam como os pilotos de corrida se vestiam no seu tempo, mas com logos em movimento nos tecidos-tela. Era genial. Convencer a molecada que era foda pagar para ser um outdoor para #brands.

Eles voaram até o Estádio de Guanabaía no Rio de Janeiro. Chovia, como sempre, em Megasampa. Antes do hovertáxi chegar à altura das permanuvens, Cascavel viu a cratera da Zona de Alienação, parecendo uma espinha estourada de concreto no meio da metrópole. Ele virou o olhar. Muitas memórias ruins naquele lugar.

Sobre as nuvens, ele olhou novamente fora da janela. Noite, escuridão, luzes flutuantes do tráfego e acima apenas a lua e as estrelas mais brilhantes podiam ser vistas através da troposfera poluída. Cascavel olhou à frente e viu incontáveis hovers convergindo no Estádio Flutuante de Guanabaía. Era tão claro que as luzes cintilantes podiam ser vistas de cima das nuvens. Os canhões de néon cromático conseguiam perfurar a névoa densa, os fogos multicor explodiam no ar. Era tão barulhento e cheio que os videogames e as multidões delirantes podiam ser ouvidas a quilômetros de distância. E Cascavel já podia até sentir as filas intermináveis e a comida cara e ruim.

Camila parecia empolgada. André estava, bom, como o André. E Cascavel jurou a si mesmo nunca mais tomar decisões de vida quando embriagado no bar do Wang.

***

Os esparadrapos de nicotina na nuca não estavam dando conta. A salvação de Cascavel foi que ele conseguiu contrabandear para dentro do estádio uma garrafa de baijiu por debaixo do sobretudo. E, rapaz, ele precisava da garrafa.

Se Cascavel ainda tivesse dois rins funcionais, ele daria um um para passar cinco minutos sozinho em uma sala de interrogação com o gênio diabólico que projetou o lugar. O Estádio de Guanabaía era na verdade um complexo formado por uma área principal e quatro secundárias. O arquiteto achou que seria charmoso colocar gôndolas para se movimentar pelo lugar. “Integrar” a graça do bairro inundado de Rio de Janeiro nessa rede. O resultado eram filas. Filas intermináveis que avançavam centímetro a doloroso centímetro e dobravam sobre si mesmas como uma lombriga de gente. E a única coisa que você podia fazer ali era olhar para as telas onipresentes de propaganda. Marketing direcionado. No chão, anúncios de comida de conforto e bombas de endorfina para os deprimidos. No teto, propaganda de condomínios e hovercarros para os ambiciosos. O software de reconhecimento facial supôs a idade de Cascavel e passou a spammear anúncios para sua faixa demográfica, como seguro de vida e gels para melhorar a performance sexual. Cascavel colocou o tapa-olho sobre o olho bom, mas ele tinha certeza que estavam também transmitindo anúncios para as suas ondas cerebrais para que depois ele sonhasse sobre comprar creme para hemorróidas.

Eles chegaram ao estádio principal. Como tudo construído no Brasil, foi inaugurado antes mesmo de terminado, com o governo até hoje entregando obras prometidas para as Olimpíadas de 2016. Cascavel podia ver que metade dos drones de luz não foram instalados e que o acabamento do chão estava inacabado. Mas, oras, pelo menos já dava pra eles verem alguns jogos. E Cascavel se pegou sentindo certo entusiasmo.

“Vocês podem não acreditar, garotos, mas eu era um gamer bem decente nos meus dias,” Cascavel falou.

Camila e André apenas encararam Cascavel de volta.

“Juro, ‘na real’, como vocês dizem. Eu entrei em Donkey Kong competitivo. Mantive o recorde regional por um tempo.”

Eles só encararam mais, depois se viraram para a tela gigante de holodrome no centro do estádio. Cascavel logo olhou também e em seguida pendeu a cabeça para o lado como um cão tentando entender algo.

“Eu detecto níveis elevados de estresse em seu corpo, Sr. Torres,” André observou, suas pupilas biônicas focando em Cascavel. “Eu recomendo que você tente relaxar, ou busque cuidados médicos.”

“Eu tentei relaxar uma vez, André, foi a coisa mais estressante que eu já fiz na vida. Eu vou ficar bem,” Cascavel falou e apontou para a tela. “Só me diz que diabos está acontecendo ali.”

“É a semifinal do Meeting of Myths,” Camila disse com uma mistura de tédio, fúria e vergonha na voz.

Cascavel tentou discernir o que acontecia na tela, mas tudo o que via era cores aparentemente aleatórias piscando como o pesadelo de um epilético viajando no ácido. Ou como naquela vez que ele misturou ayahuasca, peiote e vinho artificial barato. Nunca mais.

“Isso é um jogo?” Cascavel perguntou. “Onde está a bola? Como você faz gol.”

“Lameow, é um lane pushuerr,” Camila disse. “Não tem ‘bola’, vovô, seu comentário é tão carne que dóii.”

“Bom, quem tá ganhando então?”

“A equipe Betamax tem um total de vantagem de expansão territorial de pista de 14%, Sr. Torres,” André apontou.

“Então os Betamax estão ganhando?”

“Nãão,” Camila bufou. “Cyberdine tá tipo total na frente na conta agregada minions, ÓBVIOO.”

As luzes piscaram mais que o normal e o estádio aplaudiu.

“O… o que aconteceu?” Cascavel perguntou.

“Só o momento mais MLG everr. OMG, vô, você é TÃO modo casual.”

“Modo casual?”

“O jogador tetsunai usou um exploit de DOT legal para dar um buff antes do spawn de cooldown do combo de crow control, Sr. Torres.”

Cascavel pendeu a cabeça para o outro lado. Ainda não fazia sentido.

“É, desisto,” Cascavel falou. “Vamos assistir outra coisa, crianças. De preferência algo que não precise e um PHD em ciências computacionais pra entender.

Camila rolou os olhos.

“A gente pode ir ver os jogos de FPS, ENTÃO…”

***

“Essa é a simulação militar realista que vocês jogam?”

“Pela ZILIONÉSIMA vez, vovô, sim, Combatfront IV é a mais realís…”

“Aquele cara acabou de usar um lançador de foguetes pra impulsionar seu salto sobre o technodrome e cair em cima daquele jato em pleno voo?”

“Está correto, Sr. Torres. Uma jogada inicial tradicional no mapa histórico da Invasão de Washington.”

“Olha, se eu entendo de alguma coisa, eu entendo de lança-foguetes, ok? Aquele cara não teria pernas quando chegasse no jato, e aí seria esmagado como um inseto. Só dizendo.”

“OMG, vovô, você simplesmente não grokaa! Não importa. É. Um. JOGOO,” Camila disse.

“Além do mais, acreditem, não tiveram jatos sobre Washington naquele dia!” Cascavel reclamou. “Eles estavam presos em terra por um ciberataque preventivo de hackers. E os technodromes eram muito menores! Essa é a história que estão ensinando pra vocês hoje em dia? Que tipo de idiota escreveu o roteiro disso aqui?”

Camila apenas cobriu o rosto com as mãos e tentou desaparecer em seu assento.

***

Eles finalmente chegaram à arena principal de lutas. Cascavel finalmente ficou impressionado. Ele viu milhares de gabinetes se estendendo à sua frente como um oceano de arcades, abaixo de mais milhares de telas de holodrome transmitindo os jogos. André explicou para Cascavel que as competições do ‘Maindogēmu’s Cage Fighter Alpha 13 Turbo Edition: Gaiden’ eram diferentes de todos os outros eSports. Qualquer um com um joystick podia chegar e se inscrever. Os profissionais tier-1, claro, passavam pelos novatos como uma lâmina sônica por geléia e eventualmente se enfrentavam. Mas essa atitude livre dava ao campeonato um sucesso incrível. Era um vale-tudo com rivalidades históricas, lobos solitários independentes que faziam frente ao pessoal das grandes ligas, jogadores que forçavam os limites permitidos da cyberaugmentação e acabavam derretendo os cérebros, havia corridas armamentistas de técnicas para apertar botões mais rápido, partidas notórias entre os cinco deuses gamers yokozuna.”

“O que yokozuna?” Cascavel perguntou.

“Deuses gamers yokozuna, Sr. Torres, são títulos honorários concedidos aos melhores jogadores atuais do ‘Maindogēmu’s Cage Fighter Alpha 13 Turbo Edition: Gaiden’.”

“Eles são tão max,” apontou Camila.

“Afirmativo. Esta é a primeira competição em anos em que os cinco deuses yokozuna competem,” André disse em seu tom autômato. “É por isso que estamos incrivelmente empolgados, Sr. Torres.”

“É, estou vendo que você está fora de si de empolgação, André,” Cascavel disse tomando um gole de baijiu. “Só tente não perder a cabeça.”

André apalpou o seu próprio pescoço.

“Não detectei nenhuma irregularidade nas conexões entre meu torso e minha cabeça, Sr. Torres. Por que eu a perderia?”

“Só… esquece.”

“Vamuus!” Camila implorou. “@G0dM0de vai jogar a partida de abertura, eu quero um lugar bomm.”

Cascavel notou que Camila segurou a mão de André para que ele se apressasse. Era bom saber que contato humano ainda existia, mesmo que fosse preciso ajustar a definição do que é humano. Era engraçado como na época de Cascavel os pais precisavam ficar de olho para que os filhos não fizessem sexo. Hoje sexo está ultrapassado. Claro, a molecada ainda transa, mas o perigo real era que eles lincassem seus neocórtexes e começassem uma fumegante ação de interface tântrico-biotelemétrica. Deus perdoe que as entidades de realidade virtual logarítmica começassem a ficar fogosas umas com as outras.

As luzes diminuíram, os sons de luta dos trailers foram desligados. Um holofote foi direcionado a uma plataforma flutuante com dois homens idênticos vestindo ternos de nanopartículas brilhantes. Dois microfones desceram de drones e os apresentadores os pegaram com movimentos idênticos. Eles abriram sorrisos idênticos e clamaram em vozes sincronizadas:

“Vocês estão prontos, TRUE BELIEVERS?!”

Foi como se alguém tivesse ateado fogo em quatrocentos mil adolescentes. Eles pulavam, eles gritavam, eles choravam, eles arrancavam seus cabelos camaleônicos multicor.

“Vocês vão testemunhar a maior EXTR-RAVAGANZA GAMER da história!”

Foi como se alguém tivesse ateado fogo em quatrocentos mil adolescentes. De novo. Cascavel viu uma menina do seu lado vestindo cosplay de algum unicórnio de mangá ter um derrame. Ela ainda ria maniacamente enquanto a espuma escorria de sua boca.

“E abrindo a edição de 2116 do campeonato de ‘Maindogēmu’s Cage Fighter Alpha 13 Turbo Edition: Gaiden’, eu apresento… de Megasampa. Pesando 50 quilos de puro powerhouse gamer. O Acumulador de Especial! O Imperador do Rushdown! O Sultão dos Super Moves! O único não-japonês a ser considerado um dos cinco deuses gamers yokozuna: @G0d ‘flawless victory!’ M0000000de!”

Holofotes laser caíram sobre um garoto de pele escura e cabelo fosforescente. Agora já estava ficando ridículo. Cascavel podia furar que viu a cabeça de alguém literalmente explodir. Ele se sentiu velho num nível Jurássico.

‘E o desafiante escolhido aleatoriamente é…” os apresentadores olharam a tablets holográficos em suas mãos. “Alguém chamado Cesare.”

Os aplausos morreram. Os quatrocentos mil globos oculares da arena – assim como os mais de cinco bilhões assistindo pelo stream ao vivo – caíram sobre um garoto de olhos esbugalhados segurando um joystick suado em suas mãos trêmulas. Cascavel já perdera a conta do número de guerras pelas quais passou, mas ele nunca tinha visto alguém com tanto medo.

“Boa sorte a ambos os jogadores!” os apresentadores disseram, sem perder uma pontada de ironia no tom da voz. “Que os gaaaaaaaames COMECEM!”

Os competidores se dirigiram até um arcade no centro do estádio. @G0dM0de andava com a confiança de um gladiador com sede de sangue, Cesare como um homem no corredor da morte. Cascavel olhou a brochura eletrônica que pegou na entrada e tocou na bio de @G0dM0de. Aquele pirralho de 12 anos estava em uma rotina de treino de 16 horas diárias em uma madrassa eletrônica desde que tinha 4 anos, e assinou contratos no valor de trilhões de criptoreais. Ele era imortal também, seu perfil de DNA e consciência salvas por companhias de seguro para ser renascido. Um processo que custa mais que o PIB de um pequeno país. Cascavel não entendia lhufas de “Cage Fighter Alpha Sei-lá-o-que”, mas ele sacou porque Cesare estava se borrando.

Ambos os jogadores estavam agora cara a cara. Bom, @G0dM0de estava encarando Cesare, que encarava o chão. Cesare plugou seu joystick na máquina. @G0dM0de estalou o dedo e um subalterno se aproximou com uma mala amarrada ao pulso. De dentro dela, @G0dM0de pegou um joystick de ouro. “O” Joystick de Ouro, de acordo com a brochura. “Apenas um foi forjado pelo lendário controlsmith Masamune”. Jeasus. @G0dM0de plugou seu controle, se virou a Cesare e disse com uma voz fria, profunda, experiente:

“Que vença o melhor gamer.”

A plateia gritava conforme a tela do arcade carregou. Cesare escolheu o monge de fogo Butonai como seu personagem, mas @G0dM0de não se apressou. Ele era conhecido por não se especializar em um único personagem, mas jogar com o elenco quase completo do Cage Fighter. Ele escolheu Josephine, uma mímica francesa que virou lutadora de rua.

“O lamow tá mortow,” Camila disse. “Eles estão prometendo nerfar Josephine no próximo patchh. Josephine tá tá OP agora que nem tem graçaa.”

“OP?” Cascavel perguntou.

Camila só soltou um grunhido impaciente, mas André respondeu:

“Significa ‘OverPowered’, Sr. Torres,” ele disse. “Josephine é um personagem popular, e alguns diriam poderoso demais. @G0dM0de nunca perdeu com ela em lutas profissionais rankeadas.

A tela brilhou “round 1”, e depois “fight!”. Como de costume, Cascavel não entendeu muito que acontecia na tela, mas ele entendeu que tinha barras de vida sobre os personagens. Mas o mais engraçado era ver a câmera do rosto de Cesare. O desgraçado estava com tanto medo que jogava com os olhos fechados, como se os uppercuts de chamas, as bolas de energia e os chutes rotacionais do jogo pudessem saltar da tela e acertá-lo.

E foi então que aconteceu.

O estádio ficou quieto.

O mundo ficou quieto.

Cesare abriu um olho e viu também.

Ele tinha vencido o primeiro round.

Gritos ensurdecedores tomaram o hall gigantesco. Camila e André estavam com os dedos em seus processadores de dados da orelha e ela comentou para Cascavel que Cesare tinha “quebrado a aethernet”. Os vídeomemes, taglines de feedbloid e drama de linha do tempo já começavam a jorrar no cyberespaço.

Cesare parecia estar entre o pânico e a descrença conforme olhava boquiaberto para @G0dM0de. @G0dM0de parecia frio como gelo à primeira vista, mas Cascavel podia ver na transmissão em 16k uma pequena gota de suor rolando pelo lado de sua têmpora conforme começava o segundo round.

Para crédito de Cesare, ele jogou com os olhos abertos desta vez. A luta foi mais equilibrada, mas, no fim…

Cesare venceu a partida.

O grito coletivo foi alto o bastante para balançar a estrutura do Guanabay. Alguns berros de ‘cheater’, alguns copos de soda jogados no palco e tropas de segurança precisaram separar os jogadores da plateia. As lentes de dúzias de cameradrones estavm focadas em @G0dM0de,tentando extrair qualquer milímetro de reação de sua face.

O deus gamer yokozuna permaneceu imóvel pelo que pareceu uma eternidade. Então ele sacou um objeto de seu bolso. Ele brilhava branco e luminoso como uma estrela de neutrons. Cascavel reconheceu que era uma faca Vorpal. O gamer disse algo a Cesare, deu um berro furioso e cortou o próprio estômago no estilo tradicional seppuku. As câmeras ao vivo de holodrome captaram a erupção de sangue jorrando da boca de @G0dM0de e suas entranhas se espalhando pelo chão conforme ele desabou sem vida no chão da arena.

No final não foi Cesare que quebrou a aethernet.

***

“Eu não entendo porque vocês estão tão em polvorosa,” Cascavel disse conforme mordeu seu roachburguer superfaturado de alga hidropônica. “Foi só um show. Vão reviver ele de novo. Ele sabe disso.”

“OMJeasus, vovô, foi simplesmente o rage quit mais foda da história!” Camila disse, um saco de salgadinhos de olho de cobra sintética na mão. “@G0dM0de não saiu so do jogo, ele saiu da vidaa! Foi tão max.”

“Estou de acordo,” disse André. “Foi max.”

“Tá bom, tá bom, talvez tenha sido mesmo ‘max’,” Cascavel falou. “No mínimo, um superstar de doze anos cortar as entranhas ao vivo em holodrome não é algo que se vê todo dia.”

Cascavel sentiu uma vibração em seu cinto, olhou para baixo e viu que era o seu pager.

“Eu preciso fazer uma ligação,” o detetive disse ao ler a mensagem. “Vocês sabem onde eu encontro um orelhão?”

“Tipo, no século 20?” Camila respondeu.

“Eu posso transferir a ligação se quiser, Sr. Torres,” André disse. “Apenas passe-me o plug do seu processador de dados.”

“Obrigado, André, ajudaria muito. É bom ver que ALGUÉM ainda sabe como ser educado hoje em dia,” Cascavel disse olhando Camila, que ignorou a encarada.

Cascavel apertou os botões duros em seu antebraço de seu processador de dados Kraftwerk 2000. E logo a imagem do rosto de Cassandra apareceu na tela monocromática.

“Comissária Cassandra, há quanto tempo,” Cascavel disse. “Parabéns pela sua promoção. Eu acho que é melhor eu parar de te chamar de novata de agora em diante.”

“Detetive Cascavel, com seu estilo velha guarda como sempre,” Cassandra disse. “Como você ainda encontrou um serviço de pager hoje em dia que… quer saber, deixa pra lá.”

“No que posso ajudar?” Cascavel disse mordendo o roachburger. “Eu imagino que você não tenha me ligado por causa da minha…”

“Esquece a piada sobre sua ‘personalidade charmosa’ só desta vez, pode ser detetive?” interrompeu Cassandra. “Eu tenho um caso freelance pra você. Mesmo valor de sempre.”

“E qual é o caso?”

“Isso é secreto.”

“Olha, comissária, eu sei que sou o fodão da investigação e tudo mais. Mas até mesmo eu preciso saber o que devo investigar pra, bom, investigar.”

“Eu falo para você pessoalmente, se você aceitar o caso,” Cassandra disse. “Esse caso é importante. Sem informações até você aceitar.”

“Tá bom, aceito,” Cascavel disse. “Eu preciso preencher o rombo na minha conta deixado por esses malditos bilhetes das eOlimpíadas.”

“Você já está no estádio Guanabay?” Cassamdra perguntou. “Eu nunca imaginei que você era um entusiasta de eSports, detetive.”

“Pois é, vim ver os jogos com a jóia preciosa da minha neta e com o namorado dela,” Cascavel olhou para Camila, que mostrou a língua bifurcada para Cascavel em troca.

“Vou enviar uns policiais para escoltarem eles para casa,” Cassandra disse. “E um amigo em comum nosso para trazer você até mim.”

“Que amigo?” perguntou Cascavel.

A imagem de Cassandra sorriu no monitor pixelado.

“Oras, o ex-comissário Sakurai, é claro.”

***

O sargento Sakurai não parecia muito contente em encontrar Cascavel. Eles não trocaram uma única palavra conforme ele guiou o detetive da arena para a estação de segurança. A armadura Proctech de Cassandra estava decorada com medalhas novas desde a última vez que ele a vira, e o Dr. Junqueira também estava na estação.

“Tá, você aguçou minha curiosidade,” Cascavel falou. “Qual é o…”

“Posso ir? Comissária…” Sakurai o interrompeu. Ele parecia doido para ir embora.

“Não, sargento, você não está dispensado,” Cassandra disse. “Você vai acompanhar o detetive Cascavel neste caso. Sente-se para o briefing.”

“O que?!” Sakurai gritou. “Esse caso é meu, eu não vou trabalhar com esse maluco!”

Cassandra se levantou de sua cadeira e sorriu. Parecia que ela estava esperando por aquele momento por um bom tempo.

“Eu não quero ouvir reclamações, sargento Sakurai,” Cassandra disse. “Você acha que eu não sei que o Cascavel é maluco? Claro que ele é maluco! Mas se tem uma coisa que eu aprendi nesse trabalho é que o nosso mundo pode ser ainda mais louco. Por isso ele é o lunático que nós precisamos.”

Sakurai parecia prestes a explodir de raiva, mas ele não desobedeceu a ordem de Cassandra e sentou-se no fundo da sala.

“Vamos ao trabalho então, cavalheiros. Detetive Cascavel, certamente você ouviu o que aconteceu com Kaio Jeferson, conhecido como @G0dM0de?”

“O garoto-seppuku?” Cascavel disse. “É, eu estava lá. Imagino que a brincadeira dele deve ter feito maravilhas para a audiência. Vão agora trazer ele de volta em um reality show, algo assim?”

Cassandra e Junqueira se entreolharam.

“Não vão trazer ele de volta,” Cassandra disse.

“Quando a seguradora Salini, a empresa responsável pelo último checkpoint mental do sr. Jeferson, tentou recarregar o arquivo de salvamento descobriram que ele estava corrompido,” disse o Dr. Junqueira. “Eles têm certeza que foi sabotado deliberadamente.”

“Você está me dizendo que além dele cometer suicídio, alguém assassinou ele também?” Cascavel perguntou.

“Bom, se você considerar impedir alguém de ressucitar como assassinato, então sim,” Junqueira respondeu.

“Mas é assassinato?”

“Não sabemos ainda, leis não foram escritas levando em conta esse tipo de tecnologia,” Cassandra disse. “Mas se não é assassinato é algo pior: fraude de seguro. Companhias vão perder trilhões com a morte de @G0dM0de, incluindo do mesmo conglomerado da Proctech. A ordem veio de cima para priorizarmos isso.”

“Eles sabem quando a sabotagem aconteceu?”

“Sim, o log mostra que eles foram hackeados hoje de manhã.”

“Uma tremenda coincidência,” Cascavel apontou. “Ou quem fez isso sabia que @G0dM0de ia se suicidar.”

“É o que parece,” disse Junqueira.

“O primeiro suspeito com que vou querer conversar é esse Cesare,” Cascavel falou. “Ele está em custódia?”

“Está, e parece apavorado. Ele disse que não sabe nada sobre o que aconteceu e o scan de voz mostra que ele não está mentindo,” disse a comissária. “Ele está em um distrito Proctech por hora, pra esconder ele dos crawlers fotográficos. A imprensa ainda não está sabendo do que aconteceu, mas é questão de tempo até a informação vazar. O FeedTube está explodindo com uploads do vídeo de suicídio, mas também temos uma versão em alta definição numa fazenda de conteúdo da Ganking Media. Eles também são da Proctech.”

“É, eu vi em primeira mão como os fãs desse @G0dM0de são doidos,” Cascavel disse. “Não dá pra prever como vai ser quando descobrirem que ele morreu. Bom, que morreu de novo. Eu quero falar com o agente dele também. A partida pareceu ser de cartas marcadas.”

“O agente está no escritório dele, ou melhor, eles estão,” Cassandra disse. “O Sr. Amdusias é um par de clones que divide a mesma mente. Você deve tê-lo – ou tê-los – visto, foram os apresentadores da luta.”

“E uma arma,” Cascavel disse. “Vou precisar de uma arma também, eu não pude trazer o meu Detective Special aqui.”

Cassandra pegou uma pistola laser de um oficial subalterno e a entregou a Cascavel.

“Eu nunca me acostumei com esses brinquedos, sinto falta do coice,” Cascavel disse estudando a arma. “Mas, vai ser o jeito.”

“Isso é tudo, detetive?” Cassandra perguntou.

“Só mais uma coisa. Infelizmente não vou poder ser o parceiro do sargento Sakurai neste caso.”
“SIM!” Sakurai gritou de trás da sala. “Ele está certo. Comissária. Nós temos estilos diferentes de investigação, não iria funcionar.”

“Eu quero que ele receba ordens de mim,” Cascavel falou.

“QUÊÊ?! Son of a bitch do caralh…”

“Ok, feito,” Cassandra disse. “E nem pense em reclamar, sargento, ou você pode se tornar o ‘recruta’ Sakurai na próxima vez.”

Sakurai fumegou w fechou os punhos. Cassandra andou até ele e cruzou seus braços cibernéticos de liga de titânio.

“Algum problema com minhas ordens, sargento?” ela perguntou.

“…não…”

“Não o quê?”

“… não… senhora. Comissária.”

Depois de alguns segundos Cascavel bateu suas mãos, quebrando o silêncio desconfortável.

“Ah, vamos lá Sakurai, vai ser divertido, você sabe que eu sou o maluco que você AMA,” Cascavel falou abrindo os braços. “Estou sentindo um abraço em grupo vindo aí?”

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