Autobiografia de David Lynch mistura memórias com teorias sobre a arte e criatividade em formato tão fragmentado e não-racional como seus filmes
Em Águas Profundas é mais uma série de bilhetes desconexos do que uma autobiografia propriamente. O livro é dividido por dezenas e dezenas de tópicos como Cidade dos Sonhos, Consciência, Beleza e Textura. Alguns de poucas páginas ou até de uma única frase.
O que mais gosto de David Lynch é sua capacidade de criar uma atmosfera legitimamente onírica, sem entrar no nonsense. Filmes como Eraserhead e Cidade dos Sonhos seguem uma lógica própria como nos próprios sonhos, e costumam crescer quanto mais você os assiste, descobrindo novas referências. Os trabalhos de Lynch praticamente foram um gênero à parte, o dos “filmes de Lynch”.
Grande parte da obra se dedica à meditação transcendental, à qual o cineasta se dedica a mais de 33 anos. Também aborda os trabalhos de Lynch com música e pintura. Como biografia, Em Águas Profundas é como um filme do diretor e não faz questão nenhuma de ser compreendido. Não há uma sequência cronológica ou lógica, trazendo fragmentos, lembranças, ideias. Segue abaixo um exemplo.
Eraserhead é o meu filme mais espiritual. Ninguém entende quando digo isso, mas é verdade.
Eraserhead foi desenvolvendo de um certo modo que eu não entendia. Issi me fez procurar por uma chave que abrisse para o que aquelas sequências diziam. Claro, algumas sequências eu entendia, mas não sabia como unir todas elas. Penei um bocado para descobrir. Até que peguei minha Bíblia e comecei a ler. E um dia acabei lendo uma frase. E fechei a Bíblia porque havia encontrado: a resposta estava lá. E pude ver a coisa então como um todo. E tive 100 por cento da visão.
Nem sei dizer qual era a frase.
É interessante como Lynch encara o processo artístico e criativo não como criação de fato. É como se a obra já estivesse enterrada no subconsciente, sendo apenas redescoberta pelo artista.
Em Águas Profundas não traz revelações muito bombásticas sobre a vida de Lynch ou suas ideias, funcionando mais como uma curiosidade para os fãs do cineasta. De meu lado, ajudou a apreciar mais os filmes que já tanto gosto e vê-los com novos olhos.
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